domingo, 23 de março de 2008

BATATAS E OUTROS BICHOS


Todo dia era eu. Eu já não agüentava mais porque todo dia era eu. Me acordavam todos os dias às quatro e meia da manhã. Caralho! Às quatro e meia da manhã... Eu ficava com vontade de matar as pessoas que cruzavam por mim, mais ou menos, até às dez e meia. Isso quando eu comia alguma merda qualquer. Se tivesse com fome, com a merda da barriga roendo as tripas, só depois do rango é que dava uma diminuída na minha ira, minha gana de foder com os outros só se esvaia quando eu metia alguma coisa na barriga. E nem todos os dias eu comia por causa da úlcera e do enjôo. E isso é o que mais me danava, mais me deixa puto. Todo dia era eu. Tinha uns 50 caras pra escalar, mas todos os dias eu era escalado pra trabalhar na cozinha... Podiam fazer um rodízio, mas não... Eles te fichavam. Pegavam no pé do carinha direto. Vai ver achavam que eu não tinha capacidade pra fazer outra coisa...
E se o trabalho fosse mesmo na cozinha... se ainda fosse na cozinha... nem na cozinha não era... não era na cozinha diretamente... Na real, era numa peça fechada, meio escura, que ficava do lado da cozinha. O cheiro era de matar qualquer um. Não tinha nenhuma janela. Só uma mesona de madeira, velha pra caralho, e um banco comprido de cada lado da mesa. A gente sentava ali antes das cinco e ficava direto até a hora do rango, que começava a ser servido a partir das onze e meia, pontual, nunca atrasava. Às vezes se esqueciam de chamar a gente e a gente ficava trabalhando até dar vontade de mijar ou sentir o cheiro da comida e uma fome do caralho. Todos os dias eu trabalhava na cozinha sem nem entrar na cozinha. Sem que pudesse me beneficiar do poder de trabalhar na cozinha. Quem trabalha na cozinha é rei. Todo mundo quer trabalhar na cozinha. Gente da cozinha não passa fome nunca. Meu trabalho era, das cinco da manhã até as nove, nove e meia, junto com outros cinco caras, descascar batatas e beterrabas e cenouras e chuchu e outros bichos desses. E depenar galinha. E desfolhar espinafre.
Dependendo dava uns seis, sete, dez minutos de intervalo, pra mijar pra cagar e soltar uns peidos que a gente mesmo fez uma lei de não poder peidar dentro da porra do cubículo. Ta certo. Imagina... Quando algum de nós descolava um cigarro a gente fumava no intervalo passando de mão em mão. Era raro, mas de vez em quando rolava da gente fumar um fininho. Fazia a cabeça e voltava pras batatas.
Os mesmos auxiliares que traziam os sacos de batatas, voltavam e recolhiam as merdas dos legumes descascados. Eles se achavam mais do que nós. Acho que era porque tinham uniforme. Mas eles também não trabalhavam direto na cozinha. Só carregavam as coisas pra lá e pra cá. Mas pelo menos tinham acesso à cozinha. Passavam a manhã inteira paleteando peso. Traziam todo tipo de merda pra gente picotar. Lá pelas dez eles apareciam com sacos de feijão e largavam ali dentro pra gente escolher o feijão. A gente fazia questão de que todas as pedras estivessem com certeza dentro do feijão. Eles nunca reclamavam. Pra eles tanto fazia. O trabalho com o feijão era o mais molezinha. A gente simplesmente fazia barulho com eles e jogava pra dentro dos grandes baldes de plástico transparente que os auxiliares uniformizados vinham buscar quando tava tudo escolhido. Depois de tanto tempo trabalhando naquele compartimento fudido eu era ninja na arte milenar de descascar batatas, tirar a pele das cenouras e picar chuchu em cubinho e debulhar milho e todas essas porras dessas merdas. E assim, eu ia levando minha vidinha tranquilamente. Me fingindo de morto, bem quietinho no meu canto pra todo mundo se esquecer de mim. Eu era o homem-invisível.
Quando o negãozinho dos dentes separados que uma vez me deu um cigarro veio buscar dois baldão de feijão escolhido, o cara grandalhão de verde que trabalhava sempre sentado na minha frente já fazia uns dois anos, pulou no pescoço do moreno, e furou o pescoço do cara com a faca de descascar batatas que tinha uma pontinha bem fininha pra gente tirar os olhinhos das batatas e era bem afiadinha e bem que dava pra explodir mesmo a goela dum. Que sangüera. Era sangue pra caralho. Saltou pra tudo quanto é lado. Espalhou feijão pra tudo quanto é canto. O cara gorgolejou e caiu pra cima da mesa ensangüentando metade dos feijões que tavam em cima da mesona de madeira. O cara de verde pulou em cima dele e começou a tirar a roupa do negãozinho que não sabia se segurava a goela pra tapar o furo ou se tentava impedir o grandão de tirar as roupas dele. O cara de verde bufava, tava realmente alucinado. Parou de arrancar as calças do negãozinho dentuço, pegou a faquinha e furou o carinha de novo, desta vez enfiou fundo embaixo do suvaco e continuou um pouco afundando e rodeando a faca na ferida. E daí voltou a tirar as calças e a roupa toda do pobre do carinha que tava fudido na mão do grandão que tava completamente irado. Tirou toda a roupa do carinha. Ficou peladinho. Pegou a faca e furou o negãozinho na bochecha. O crioulo gritou pra caralho. A gente não sabia o que fazer... ficamos todo mundo colado na parede, de cara, quando espirrou o primeiro sangue eu ja tava encostado na parede. Os outros foram levantando cada um na sua, todo mundo apavorado e vieram também se encostar nas paredes. Todo mundo com os olhos estalados, olhando a cena na nossa frente. Macabro pra caralho. O negãozinho deu dois gritos de arrepiar e olhava pra gente pedindo ajuda. O cara ajeitou a boina verde, deu uma olhada pra nós, como quem pergunta se alguém vai querer se meter, agarrou a maior cenoura que achou atirada por ali e virou o cara de bunda pra cima e enfiou a cenoura inteirinha no cu do negão. Juro que fechei os olhos. Não aguentei. A úlcera moeu forte na barriga.
Não demorou pintou o pessoal da segurança. Tudo de terno preto, todos de óculos escuros. Cercaram o grandão, mandaram largar a faca... Ele largou... Desceram o pau nele. Bateram pra caralho. Todo mundo junto. Não é que nem filme de kung-fu que vai um de cada vez. Entrou todo mundo junto, rebentando. Eram uns dez dando porrada. Rebentaram a cara dele pro resto da vida. Chutaram tanto nas costas e por tudo que não sei como o desgraçado não morreu. Se é que não morreu. Acho que morreu. Arrastaram aquele enorme cara como se fosse um trapo e levaram ele pra sala da segurança que ficava lá embaixo junto com a sala das máquinas. Depois, chegaram três carinhas da faxina, de macacão amarelo, bacana, cheios de vassoura e de balde e de esfregão de tudo quanto é jeito, acompanhados por um baita negrão da segurança que eu até conhecia de vista. O negrão da segurança mandou a gente liberar a salinha pro pessoal da limpeza limpar o sangue e lavar os feijões e levou a gente pra cozinha. Caralho, eu me dei conta que nunca tinha entrado na cozinha. Fiquei olhando pra tudo quanto é lado. Aquele monte de panela brilhando. A fumaça fumegando. Um monte de gente trabalhando. Um cheiro forte dum monte de rango diferente. A minha barriga chegou a roncar alto. O negrão da segurança disse pra gente sentar num banco e tirar o resto do tempo de folga e se a gente quisesse podia até antecipar e fazer um rango logo. É claro que a gente quis. O negão falou que o negãozinho, o auxiliar de cozinha tinha violentado a irmãzinha do grandão de verde. Então, mereceu mesmo uma cenoura na bunda. Pena que não foi mais cedo daí a gente podia ta comendo antes ainda.